O Dorso da Navalha – Nilson Santos

O DORSO DA NAVALHA

Nilson Santos

nilson@unir.br

 

Afinal, acabou o corte da navalha, ou estamos usando o lado sem corte?

A Filosofia, ou melhor, as filosofias apresentadas até a década de 80 não pouparam vigor e arrogância ao refletir os velhos problemas do Homem, nem mesmo deixaram de buscar novos paradigmas. Afinal o ser de uma filosofia fazia-se visível sobre os corpos de outras que ela mutilara, tornando-as impotentes diante de uma reflexão que se propunha mais rigorosa, abrangente e bem estruturada.

Hoje, nada mais demodê que falarmos em radicalismos. Preferimos, senão falar abertamente, ao menos insinuar nossas novas crenças pautadas não numa reflexão rigorosa, mas em algo mais ameno, que seja menos exigente conosco, que nos permita viver com o mundo, sendo como ele, preocupando-se com seus valores, usufruindo suas benesses, sem ao menos ruborizarmos. Pensamos jamais voltar ao radicalismo solitário e ousado. Preferimos errar com a “humanidade”, a caminhar só. Afinal perdemos ou cedemos?

As reflexões negociadas parecem conter não somente o bem, o mal, mas parece ser o portador do bálsamo que alivia e estanca a sangria do conhecimento. No lugar das feridas abertas e do corpo errante em busca do novo, preferimos ser socialmente saudável, limpo das agruras do mundo, “bem comportado”, que nunca anda longe de casa.

Escolhemos democraticamente o que não necessariamente procurávamos: ancoramos numa praia de areia tão fina e macia, que nos envolve e imobiliza, conquistamos um sol tão acolhedor, que não pensamos noutra coisa senão em dormir sob seus raios.

Arquitetamos um novo mundo onde estranhamente todos são dotados de vontade, de inteligência e de plena participação, sem algum tipo de valor absoluto que cobre qualquer responsabilidade mais conseqüente, que nos poupa das longas conferências, reuniões, dos acalorados debates nos botecos, das noites mal dormidas, das desconfianças de nós mesmos. Este mundo novo, de tão seguro, nos obriga a despojarmos nossas afiadas navalhas, nos convida a abandonarmos a astúcia e a desconfiança. Deixamos de ser guerreiros para nos confundirmos com um bando de colegiais em férias.

Mas este cenário criado parece ao mesmo tempo acolhedor, familiar e suspeito, ao caminharmos de forma mais maliciosa, nos é permitido ver que as novas construções são as antigas agora pintadas e com janelas maiores, para se tornarem mais agradáveis, vemos ao longe o local onde supomos ter atracado um dia: é possível enxergar a vistosa e velha torre de ferro, que abriga em seu topo um farol, que com sua constante luz intermitente, convidou-nos sempre a nunca partir ou a sempre voltar. Bem abaixo nos deparamos com um velho porto e o nosso barco, que apesar do movimento do mar ao seu encontro permanece seguro, talvez aprisionado nesta terra firme.

E a imagem suspeita se completa: são as mesmas e antigas casas, agora reformadas, os sorridentes nativos são nada menos que os antigos liberais, e aquela luz piscando revelou ser o velho e mitológico Porto Seguro, lugar que desconjuramos, fonte do maligno, que agora nos abriga.

Estranhamente, os saudosistas são aqueles que buscam arregimentar boa tripulação para de novo singrarem os mares em busca de novas odisséias de criação.

Na verdade, quando chegamos, de volta, a maior parte da tripulação sabia onde havíamos atracado, mas num silencioso motim, embarcamos e comemoramos todos como se tivéssemos atravessado o oceano e atingíssemos um ponto longínquo do outro lado.

Aquele espírito que de tudo duvidava, de tudo achincalhava, de tudo desacreditava, sucumbiu; o último Diógenes foi morto.

Em seu lugar, o antigo revolucionário, agora dócil cidadão, se preocupa em retirar os pontos de interrogação de cada frase, substituindo-os por pontos finais.

A Filosofia sempre apaixonou por andar de braços com a inquietude; sempre atraiu por tornar a rir do óbvio, e torná-lo objeto de reflexões mais e mais profundas. E agora alguns poucos em nome do bom senso, vêm nos dizer: baixem as lanças, podemos alcançar uma saída política, negociando os problemas do homem.

Parece que percebemos que se trocarmos nossas espadas por cabos de vassoura poderemos continuar a brincar de mocinhos e bandidos, sem ferir ninguém, com a consciência tranqüila que seremos os eternos heróis no jogo social, já que prosseguimos no nosso simulacro de duelo, vestidos de capa e máscara, mocinhos de brinquedo contra inimigos de verdade. Enquanto isto, nem mesmo arranhamos o “status quo”. Acreditamos que podemos continuar a falar de transformação, de dialética, de revolução, propondo remendos ou acudindo aqui e ali, um ou outro desavisado que se põe no caminho da “história” e acaba engolido pelo mercado.

Alguns antigos bruxos medievais, quando queriam predizer o futuro, sacrificavam um animal e olhando suas vísceras. Se a prática parece pouco aprazível, a alegoria é perfeita. A resposta, para o futuro, não está nos pronunciamentos oficiais, nem nas políticas públicas, mas nas entranhas do que não é (e talvez não deva ser!) revelado.

Não mais nos perguntamos se um novo jogo pode ser jogado ou quando destruiremos definitivamente nosso sórdido mundo, mas nos resignamos a pleitear alterações e alguma saída “pelo debate”, “pelo consenso”, “pela hegemonia”, devidamente expurgada dos radicalismos, garantindo de antemão que “em direito adquirido não se mexe”. Por covardia de perder o que temos, tornamos Gramsci um escoteiro e Marx um democrata! Queremos cúmplices para nossos crimes! Queremos um mundo mais justo, porém ainda capitalista, como se isto fosse possível!

O Velho Continente que produziu correntes filosóficas antagônicas de um vigor ímpar, acabou por obrigar a todos, em nome da Humanidade, a desarmar-se para realizar o diálogo que lenta e democraticamente trata novamente de excluir minorias e estrangeiros.

Não exigiria muito rememorarmos o “empoeirado” Augusto Comte, para quem o produto da Revolução Francesa foi uma anarquia indesejável. Este quadro anarco-revolucionário, que permitia a plena capacidade criadora do indivíduo, deveria se dirigir para preservar o todo social. A Religião da Humanidade parecia ser a catalisadora e modeladora dos sonhos do homem.

Hoje, a “Globalização da Economia”, a rede mundial de cooperação e informações, a “Aldeia Global”, dá-nos a sensação que somos todos representados, que vivemos num mundo em busca da prosperidade e da ordem, e que aqueles que se opõe, estão se colocando contra a prosperidade mundial. Quem estiver disposto a revelar o canto da sereia, é logo identificado anacrônico, e como tal deve ser tratado.

Temos a ordem, o desejo democraticamente expresso do homem como a luz redentora, e tudo o que se opõe, deve ser minimizado pela “Religião da Humanidade”, ou seja, pelo novo ópio: a democracia.

Esta Pós-Modernidade nos arrasta para a ERA DA CONVERGÊNCIA INOFENSIVA (que poderia ser muito bem chamada de pós-neo-nada).

Esta necessidade de confluências de todas as forças materiais e espirituais que a democracia exige, obriga todos a se desterritorializarem, perdendo sua identidade e sua individualidade, desfigurando e neutralizando as ideologias, as artes, as formas de exploração, para instaurarmos pelo movimento cínico da razão calculada um mundo isento de grandes divergências ou pontas afiadas.

Assistimos todos os dias, e aplaudimos, quando vemos os mais variados grupos políticos e econômicos abrirem mão dos instrumentos de pressão e poder que fizeram uso, para poderem de agora em diante entrar no jogo democrático. O que nos causa uma paz de espírito!

O Movimento Social Italiano deixou de ser fascista, o IRA quer dialogar, os partidos comunistas querem o mercado. Todos querem a imagem centrista.

O passaporte de ingresso tem que ter o carimbo do expurgo; temos que ser despojados das cores do passado ou até mesmo do futuro. O cinza, da sobriedade, dá o tom da modernidade. O negócio é dialogar, O NEGÓCIO É NEGOCIAR!

Neste sentido não há lugar mais confortável que o Justo Meio (que o Bom Senso), eqüidistante de qualquer ponto, pode ceder à todos em nome da metafísica convivência fraterna e do valor mais sagrado que é o diálogo e a negociação.

Levantar-se da mesa de negociações, significa expor-se à encarnação do mal. Não negociar, não ser razoável significa o mesmo que opor-se à Humanidade (ou ao mercado, tanto faz!).

Deveria parecer estranho que a democracia virasse unanimidade entre corruptos, pacifistas, empresários, políticos profissionais, religiosos e até militares.

Isto não representa a apologia dos extremos, mas a sensação de perdemos a capacidade de nos sensibilizarmos para o novo.

E a Razão se torna a mais pura expressão da negociata justificável e lógica. Partimos do preceito ingênuo (ou conveniente!) que todos de forma civilizada conseguem entender e fazer-se entender.

A sensação é semelhante a do arqueiro que ao juntar todas as flechas para transportá-las resolve atar a cada ponta um chumaço de estopa, para não ferir ninguém. Assim, a Filosofia em nome do metafísico Bem Comum, permite reduzir o pensar ao estudo das possibilidades dentro do universo existente. Não fazemos conjecturas arrojadas, não inovamos, apenas fazemos uso da razão para combinar as premissas existentes na expectativa de conseguirmos a saída menos traumática.

Isto pode parecer contra-censo com o que sentimos atualmente, onde não temos parâmetro para nada, valem todas as estéticas, e ao mesmo tempo não vale nenhuma; valem todas as éticas e nenhuma.

Talvez em tempos de Pós-Neo-Nada, subsista a Moral Das Necessidades Básicas e o Direito do Consumidor.

Convergimos para a “Humanidade”, despojamo-nos de tudo, e nos tornamos nada. Dirigimos todas as nossas energias e atenções devidamente envoltas em estopa para um alvo onde batemos com força e não podemos penetrar, pois plasmar a radicalidade e a individualidade deturpariam o jogo.

Nossa insatisfação não passa, portanto, de pequena disfunção econômica de falta de distribuição de renda, seguramente perceptível pelas mercadorias que nos faltam. Nada que um pequeno ajuste de Política Econômica e boa negociação não resolvam.

Pode parecer estranho, mas, nos transformamos em simuladores de um jogo que não quer mais ver ganhadores, senão duradouros jogadores metafísicos. Tornamo-nos esperançosos e cúmplices.

Todos sentimos a falsidade do jogo, mas ninguém diz. Melhor o faz de conta. A navalha é a mesma, nós é que propositadamente viramos o fio para cima.

Continuamos a realizar com vigor, o ato de cortar, porém, sabemos que nada será talhado, pois deliberadamente usamos o dorso da navalha, usamos uma filosofia morta e uma razão bem comportada, que não quer mudar.

Vale a pena lembrar a provocação de Lacan: “Como ter certeza de que não somos impostores?”

A navalha está sobre a mesa, nós é que não queremos cortar.

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3 pensamentos sobre “O Dorso da Navalha – Nilson Santos

  1. Nos tornamos preguiçosos, nos contentamos com um alimento que não alimenta, enganamo-nos acreditando estar de barriga cheia, mas dentro não tem nada.

  2. Paulo, lembra do poema do Vladimir Mayakovsky,
    Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim / E não dizemos nada…

  3. Olhando me parece que estamos em torpor, anestesiados, acreditando que nada está errado. Devemos olhar ao redor e ver que tem muita coisa errada e que a luta não acabou.

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